segunda-feira, 8 de março de 2010

EVANGELISMO


A força de uma tradição
Igrejas evangélicas enfrentam restrições e pouco crescem na região de Aparecida, o maior centro católico do Brasil
Quem acompanha os gráficos de crescimento da fé evangélica no Brasil – nos últimos 15 anos, o número de crentes saltou de 9% da população para cerca de 16%, ou quase 30 milhões de pessoas – haverá de se espantar se der uma olhada nas estatísticas religiosas da região de Aparecida (SP). Ali, na cidade que é o principal pólo do catolicismo no país e abriga a majestosa Basílica de Aparecida, dedicada àquela que é considerada pelos católicos como a santa padroeira do Brasil, os evangélicos têm pouco espaço. A inauguração do megatemplo, em 1967, foi decisiva para que a cidade tenha um dos menores percentuais de população evangélica do país – segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, ela não passa de 5%. E isso não acontece só em Aparecida. Em outras sete cidades da região, a presença dos crentes é pífia. Municípios como Silveiras, São Luís do Paraitinga, Areias, Redenção da Serra, São José do Barreiro e São Bento do Sapucaí chegam a apresentar apenas 3 por cento de evangélicos entre seus habitantes. Em Lagoinha, a escassez evangélica é ainda mais aguda: na cidade, de 5 mil habitantes, vivem apenas 56 crentes.O resultado da pesquisa mostra que a proporção de católicos nestas cidades é bem superior à média nacional, de cerca de 74%. Outro dado que interfere na questão da religiosidade da região de Aparecida, situada no Vale do Paraíba, é que em municípios cuja população é inferior a 50 mil moradores o catolicismo tende a ser ainda mais hegemônico. “Cidades com populações maiores apresentam maior diversidade de confissões e crenças, havendo mais pluralismo religioso”, observa Nilza Martins, pesquisadora do IBGE. “A existência do Santuário Nacional da Padroeira influencia a religiosidade das cidades vizinhas.” Além do aspecto demográfico, o progresso econômico é tímido e o neopentecostalismo ainda não se estabeleceu com a força que apresenta nos grandes centros urbanos. O fato é que lá há um acirramento das diferenças religiosas que não se observa em outros pontos do país, com exceção, talvez, do interior do Nordeste. Para o padre Joércio Gonçalves, reitor do Santuário Nacional, a presença maciça de católicos e o pequeno número de evangélicos na cidade tem a ver com a própria peculiaridade do local. “Aparecida é uma cidade que social e culturalmente é católica por natureza, pois desde o advento da imagem de Nossa Senhora, ela foi se formando e adquirindo suas características em torno do santuário”, explica. Joércio refere-se ao descobrimento de uma imagem de Santa Maria, no século 18, que deu origem à cidade (ver quadro). Embora acredite que exista um certo sectarismo e proselitismo agressivo por parte dos evangélicos, o padre afirma que a convivência entre católicos e evangélicos da cidade é pacífica. “Antigamente foi muito pior. As intrigas acabaram – hoje as coisas caminham com muito mais serenidade”. O clímax do conflito entre os dois grupos se deu em 1996, no polêmico episódio do chute na santa.De acordo com o religioso, o único impedimento que existe à pregação dos evangélicos é dentro da basílica. “Nós orientamos os crentes a não fazerem seu trabalho no interior do templo, até por questão de respeito àqueles que vêm ao santuário expressar sua fé. Do lado de fora, desde que haja cordialidade, não há problema algum”, comenta. A entrega de folhetos torna-se mais intensa no dia 12 de outubro, justamente o dia dedicado à santa. A data foi elevada à condição de feriado nacional por ocasião da primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980 – fato que, todo ano, gera protestos de setores evangélicos que não aceitam submeter-se a um calendário com datas dedicadas a uma religião em um Estado laico. Dezenas de caravanas missionárias desembarcam em Aparecida todos os anos para fazer evangelismo. Agências como a Jovens com uma Missão (Jocum) treinam especificamente seus integrantes para esta atividade. Intolerância – A tolerância alardeada pelo padre Joércio, contudo, não é confirmada por Noel Rodrigues Tavares, pastor da igreja Assembléia de Deus Ministério Belém em Aparecida. Ele conhece bem as dificuldades dos crentes de lá. Noel acredita que haja perseguição, sim, prejudicando o trabalho de evangelização na cidade. “Os padres impõe barreiras contra nós, e pedem na rádio para o povo não aceitar nossos folhetos”, reclama. Ele também conta que é comum haver agressões por parte dos comerciantes contra aqueles que evangelizam nas ruas e feiras livres. Entre os vários problemas, o pastor destaca alguns casos em que a intervenção policial foi acionada por moradores, como em cultos ao ar livre e até mesmo vigílias de oração. “Nós tomamos cuidado com relação ao barulho, mas assim mesmo os vizinhos se sentem incomodados. Agora, para fazermos vigílias, só com alvará”.Em alguns locais da cidade, é quase impossível abrir um ponto de pregação, como é o caso do bairro periférico de Santa Terezinha, onde não existe nenhuma igreja evangélica. Noel conta que, há cerca de um ano e meio, uma igreja tentou se estabelecer lá e o resultado foi desolador: o templo foi apedrejado e o trabalho, desfeito.Outra queixa de Noel é em relação ao descaso das autoridades públicas com os evangélicos. Segundo o pastor, fiscais da prefeitura recolhem os folhetos e até impedem trabalhos de evangelização. “É muito difícil evangelizar aqui”, faz coro Geraldo Aureliano da Silva, membro da Congregação Cristã Universal Independente, uma igreja pentecostal da cidade. “Colocam muitos empecilhos para a gente”.“Estou procurando saber se existe uma lei municipal que impeça a gente de evangelizar. Que eu saiba, não existe nenhum regulamento que passe por cima da Constituição”, protesta. Em 1996, a prefeitura editou uma lei polêmica que impedia a abertura de templos evangélicos num raio de seis quilômetros ao redor da basílica. O pastor Noel conta também que pedidos, como a cessão de ônibus para transporte de evangélicos para eventos, costumam ser negados – embora, segundo ele, a prefeitura volta e meia atenda pleitos semelhantes das paróquias católicas. “O que eu percebo é que os políticos não são contra a gente. A verdade é que a cidade está nas mãos dos padres”, conclui.Ouvido por ECLÉSIA, o prefeito de Aparecida, José Luiz Rodrigues (PFL), diz que desconhece qualquer discriminação do poder público contra os crentes. “A prefeitura mantém uma convivência saudável com todos os setores religiosos da cidade”, afirma. Em seu segundo mandato consecutivo, o prefeito, também conhecido como Zé Louquinho por causa de algumas de suas medidas – ele já colocou, por exemplo, cachorros para vigiar o cemitério municipal e tentou proibir o uso de minissaias no município –, admite que a cidade já presenciou disputas entre católicos e evangélicos. “Mas na administração anterior à minha”, apressa-se. De acordo com ele, a liderança católica não interfere na condução política de Aparecida. Rodrigues diz ainda que a prefeitura procura atender as solicitações dos católicos na realização de eventos, principalmente festas religiosas, como a de Nossa Senhora e São Benedito, as principais da cidade.Sobre a denúncia de que agentes da prefeitura impediriam a distribuição de folhetos ou cultos ao ar livre, o prefeito também é lacônico: “Os evangélicos têm total liberdade de fazê-lo. Isso feriria as liberdades constitucionais de culto e expressão”. O político diz ainda que o município só fornece transporte oficial gratuito para estudantes. “De outra forma, estaremos ferindo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foi por isso que não pudemos atender à solicitação do pastor”. “Os ceifeiros são poucos” – Por sua vez, os moradores e comerciantes da cidade dividem-se em relação ao trabalho dos evangélicos. Para Milton do Prado, católico e morador de Aparecida há 28 anos, eles não incomodam. “Desde que respeitem o próximo, tudo bem. O mundo é livre pra todos” opina. Pensamento diferente tem Ivone Ferreira, comerciante e católica fervorosa. ”Eu acho que deveria ser proibido o que eles fazem aqui. É uma ofensa. Os católicos não fazem barulho na porta dos crentes”, reclama. Já para sua filha Nilza Ferreira, o trabalho de proselitismo dos crentes é inútil. “A maioria das pessoas aqui nem toma conhecimento dos evangélicos. Os católicos recebem os folhetos, viram as costas e jogam fora”, comenta. Isso acontece, em parte, por causa da agressividade com que determinados grupos evangélicos abordam os devotos de Aparecida – alguns folhetos ridicularizam a figura da santa e outros chamam a Igreja Católica, jocosamente, de “Babilônia”.“Quando esse pessoal vai embora, nós, que somos daqui, é que temos que pagar o pato”, resigna-se o pastor Noel. Segundo ele, as igrejas locais não evangelizam no 12 de outubro, justamente para não ferir suscetibilidades. Mesmo assim, conta, fazem um evangelismo frutífero: “Trabalhamos sempre aos domingos, com grupos de 50 pessoas, e distribuímos mais de 1,2 milhão de folhetos por ano”. Tais impressos não agridem a fé católica e trazem apenas mensagens bíblicas, diz o pastor. “Procuramos não acusar os católicos nem falar mal da imagem da santa, e sim, anunciar a Aparecida o amor de Deus e de Jesus Cristo, nosso único mediador”, justifica.Na vizinha Lagoinha, a presença evangélica é ainda mais tímida. Tanto, que a cidadezinha, com apenas 5 mil habitantes, leva o título de município mais católico do Estado de São Paulo – nada menos que 96% da população local professa a fé romana, a maioria com bastante fervor. Entretanto, segundo o pastor assembleiano José Mariano Filho, ao contrário de Aparecida, intolerância religiosa é coisa que não afeta os crentes lagoinhenses: “O povo daqui é educadíssimo, e tem recebido bem a Palavra”, comenta. Sobre o seu relacionamento com o clero católico da cidade, Mariano afirma que é o melhor possível. “O padre daqui é uma pessoa muito boa, e ele até conversa comigo na rua”, conta.A Assembléia de Deus é a igreja evangélica mais antiga de Lagoinha. Porém, crescimento sempre foi uma pedra no sapato, não só dela, mas de outros trabalhos, como o da Igreja Batista e o da Congregação Cristã do Brasil, hoje quase inexistentes. Segundo o pastor Mariano, vários fatores dificultam a expansão do Evangelho na cidade, a começar pelo próprio sustento da obra. A sua igreja, que tem uns 40 membros – em sua maioria, trabalhadores agropecuários, a principal fonte de renda local –, é pobre. “Com o que a igreja arrecada, fica muito difícil mantê-la”, diz. Ele mesmo, para sobreviver, trabalha como motorista. A escola dominical, por exemplo, tem que ser feita no sábado à noite, pois aos domingos o pastor costuma trabalhar para esticar a renda familiar.Há seis anos no púlpito da Assembléia de Deus de Lagoinha, Mariano diz que o trabalho não tem sido em vão. “No meu primeiro ano de ministério aqui, batizamos mais de 30 pessoas”, comemora. Somando-se todas as conversões desde então, o pastor calcula que a igreja teria hoje mais de 80 membros – mas, curiosamente, o IBGE encontrou só 56 crentes vivendo na cidade. O pastor explica: “Muita gente acaba conseguindo emprego em cidades maiores, esvaziando a igreja. Permanecem como membros, mas não moram mais aqui”. Ele confessa que o que mais prejudica o evangelismo na cidade não é oposição à fé, e sim, falta de união dos crentes. “Isso tem trazido mau testemunho aos moradores”, destaca. Entretanto, o pastor acredita que isso possa ser revertido, se mais obreiros forem enviados para Lagoinha: “Eu oro todos os dias ao Senhor pedindo mais ceifeiros para sua obra, porque os daqui são poucos”. E completa: “O povo está sedento de Deus. É hora de aproveitar essa oportunidade”. Uma cidade que nasceu católicaSegundo a tradição católica, em 1717 um grupo de pescadores da então vila de Guaratinguetá, após três dias infrutíferos no rio Paraíba do Sul, resgatou das águas uma imagem da Senhora da Conceição, sem a cabeça. Lançaram as redes novamente e encontraram a outra parte da peça. A partir daí, os peixes teriam surgido em abundância. Logo iniciou-se um processo de devoção à imagem, à qual se atribuiu supostos poderes sobrenaturais e graças alcançadas por aqueles que rezavam diante dela. A região em torno da pequena capela foi se expandindo, dando lugar a uma vila que, anos depois, viria a ser o que é hoje o município de Aparecida, com seus 35 mil habitantes. Porém, a cidade recebe todos os fins de semana uma multidão de romeiros vindos de todas as partes do Brasil e do mundo, sobretudo na época do dia da padroeira, comemorado em 12 de outubro. É praticamente impossível encontrar vagas em hotéis e o comércio da cidade fervilha, sendo estas as suas duas principais atividades econômicas. No ano passado, cerca de 7 milhões de romeiros e turistas visitaram a cidade. Segunda maior basílica do mundo – perde apenas para a de São Pedro, no Vaticano –, o Santuário Nacional de Aparecida comporta 45 mil pessoas.
Claiton CesarJornalista da revista Eclésia

Nenhum comentário:

Postar um comentário